Alguns pescadores com toda sua vivência na pesca, relatam abaixo o que era a atividade no passado e as mudanças que ocorreram desde então. São as memórias vivas que comprovam uma realidade não estudada nem pesquisada, que vão sendo apagadas pelo tempo...
Relatos
* No início não havia barco de pesca. Pescava-se com rede de arrastão de praia, uma rede de algodão com 50 a 60 braças de comprimento por 6 de altura e malha de 3 "pontas de dedo", confeccionada pelo próprio pescador. O cabo era de imbé (cipó preto), comprado no bairro de Mambucaba, em pedaços de 20 braças, que eram emendados até se conseguir o comprimento desejado de aproximadamente 200 braças.
Não havia interesse em possuir um barco de pesca em Angra, pois não tinha a quem vender a produção. A pesca era farta e o pescado barato. Em contrapartida, o barco e os aparelhos de pesca eram muito caros. Somente em 1940 surgiram os primeiros barcos angrenses de pesca.
Com 12 anos os meninos eram iniciados na arte da pescaria, e com 14 ou 16 já estavam trabalhando à bordo.
Os barcos que pescavam na região vinham de fora, a maior parte do Rio de Janeiro e poucos de Santos. Chegavam ao cair da tarde e iam embora de manhã com os porões cheios de peixe. Pescava-se muita sardinha, xerelete, goete, xaréu do preto, corvina, palombeta e outros. Uma carga completa naquela época era de 200 a 300 caixas de 100 quilos cada. A rede era de algodão, com 180 a 200 braças de comprimento por 15 a 18 braças de altura, de acordo com o tamanho do barco.
Em 1950, surgiu o primeiro cerco flutuante, técnica trazida por um japonês de Santos que se transferiu para a Joatinga e logo copiada pelo sr. Manoel Pilape e instalada na Jurubaíba juntamente com o sr. Benedito Torquato.
Podia-se ter redes especiais para a pesca de robalo e do cação, pescado também com espinhel, que abundavam na região. Barcos pesqueiras, baleeiras e canoas a remo eram utilizadas.
A partir de 1956 foram acontecendo mudanças importantes nas embarcações: fogão a gás, rádio, banheiro a bordo.
Manoel Corrêa dos Santos
* Era o ano de 1930 e as condições a bordo eram muito precárias. O motor era cabeça quente e, para se dar partida, a câmara de explosão era pré-aquecida a maçarico ou, quando este entupia, a carvão. Só então se rodava a manícula para dar a partida.
O fogão era a carvão, sendo necessário estoques de carvão à bordo, comprado dos fazedores de carvão em qualquer praia da Ilha Grande. Os barcos eram de boca aberta, não tinham toldo. Enfrentava-se o mau tempo com camisetas de marinheiro, pois nem o oleado (roupa própria para pesca em dia de chuva) existia. Para um barco de 12 a 15 metros de comprimento tinha-se uma tripulação de 12 a 15 homens. A iluminação era feita com archote de bambu e bucha de saco de estopa.
Não havia gelo na região: todo o gelo vinha do Rio ou da Marambaia, em pedras de 20, 25 até 30 quilos, e eram britadas à bordo com um britador manual de 350 a 500 quilos. Britava-se 250 a 300 pedras por pescaria. Não havia guincho: puxava-se a rede na mão. Para gelar a pescaria não havia pá: usava-se um tipo de prato de ágata quadrado. Sem botas de borracha, usava-se um tamanco de madeira, fechado com couro aberto no calcanhar. Banheiro à bordo não existia. A cozinha era da mesma forma muito precária.
A rede de algodão tinha um grande inconveniente: era preciso secá-la de dois em dois dias e no máximo três, correndo o risco de apodrecer caso ficasse molhada e amontoada à bordo. Tal operação exigia a existência de duas turmas de pescadores, a de bordo e a da rede. Esta tinha por tarefa cuidar da rede em terra, colocando-a para secar em varais e reparando-a. Se porventura o barco estivesse pescando fora, rezava-se para se encontrar uma pissirica (pedra) para poder estender a rede para secar.
Periodicamente se fazia necessário o tingimento da rede, o qual era feito com uma tinta extraída da casca do "cobi" (tipo de árvore da região), pois a panagem de algodão se descolorava muito rápida, tornando-se esbranquiçada e diminuindo o seu poderio de pescaria.
Pescava-se somente pelo lado de fora da Ilha Grande. O risco de se danificar o aparelho de pesca, pescando dentro da baía, era muito grande.
Natalício dos Santos
* Somente em 1965 apareceram as primeiras redes de nylon. A cor inicial era branca. Tentou-se tingi-la com "cobi", mas não se obteve o sucesso esperado. Começaram então a fabricar com uma cor avermelhada, que também não aprovou. Só então passaram a fabricar o fio com a cor azul marinho, que existe até hoje. Na discussão das fábricas Mazzaferro e na Equipesca, sobre o problema da cor e tipo de redes a serem utilizados, o sr. Manoel Corrêa dos Santos (Manoel Pilape) participou ativamente a convite das mesmas.
Havia fábricas de beneficiamento de sardinha nas seguintes localidades da Ilha Grande: Bananal (09), Matariz (02), Longa (01), Ubatuba (01), Maguaraquissaba (01), Praia Vermelha (01), Araçatiba (01), Freguesia de Santana (02) e Abraão (01). Na Ilha da Jipóia havia na Fazenda (01), Flechas (01), Armação (01) e Vitorino (01). No centro da cidade havia 01.
Com o advento da sonda houve uma reformulação na pesca da sardinha. Não era mais necessário se ver o peixe velado (nadando na superfície) ou esperar anoitecer para pescar. A sardinha, que já passava por um período de escassez, sofreu mais um golpe porque a sonda acusava a existência do cardume, mas não o tamanho. Então, matava-se tudo.
Benedito Peres Filho
* Por fora da Ilha Grande e próximo às ilhas do Cação e do Cedro via-se no verão cardumes de cação com mais de um (01) quilometro de extensão por outro tanto de largura, metendo até medo nos mais experientes pescadores pelo tamanho e quantidade de peixes. Do cação pescado fazia-se o bacalhau, numa fábrica no centro da cidade, de nome Ovar.
Era comum em um só lance de pesca matar de 200 a quase 300 caixas de peixe. O sr. Benedito Peres Filho (seu Quiquito) conta que cercou um cardume de pesca perna de moça (branca) que contabilizou um total de 270 caixas. Para o tipo de aparelho de pesca e de barco da época, isto era um feito.
Existiam mestres e proeiros que tornavam a pescaria mais precisa devido ao seu conhecimento sobre os peixes. Quando o peixe não estava boiado, alguns podiam identificar com precisão a espécie e o tamanho do peixe só pelo movimento do cardume abrindo por baixo do barco, quando se passava por cima dele. Existiram alguns que só de olhar a água podiam dizer a profundidade com pequena margem de erro e, em 90% dos casos, acertavam a espécie cercada.
No período de 1970 a sardinha começou a faltar por um ano ou dois. A principal causa foi a pesca predatória. Pescava-se a sardinha com 10 a 12 cm, chamada de meiã ou da ilha, por pressão das fábricas do Rio, que não aceitavam a sardinha do norte, que era uma sardinha maior, pois a mesma não cabia três por lata.
Os japoneses, das fábricas de Angra, por sua vez, não aceitavam a sardinha pequena, somente a sardinha maior. No entanto, o preço de fábrica era melhor e compravam toda a sardinha que lá chegasse. Esta diretriz da fábrica foi o início do martírio da sardinha em Angra, que não conseguia chegar ao tamanho para que ocorresse a desova.
Além desses inconvenientes, havia o fato de que, se a fábrica de sardinha estivesse com sua capacidade totalmente ocupada, não se podia matar a sardinha, tendo de partir para outro tipo de peixe, com o detalhe de se matar pouco, pois não se tinha a quem vender. Até para descarregar a pescaria era uma dificuldade. Uma caixa de madeira vazia, utilizada na descarga, pesava 20 kg, e não se tinha pontes de desembarque. As caixas eram levadas nas costas até o interior das fábricas.
Manoel Corrêa dos Santos
* Os cardumes eram enormes durante o dia: o xaréu do preto, a palombeta, o xerelete, o bonito cadela. Podia-se ouvir o ronco (barulho das águas) a trinta metros das praias da Ilha Grande e Jipóia quando se aproximavam vinda atrás das sardinhas, que entravam pelo meio das pedras da costeira, correndo dos seus predadores.
Seu Quiquito conta que na praia das Flechas (Ilha da Jipóia), no ano de 1927, quando o bonito cadela se aproximava, as crianças, ele inclusive, com 10 anos na época, iscavam o anzol e da praia mesmo o lançavam ao mar. Mas brigar com um peixe com seus 10 a 15 kg era impossível para eles. Também conta o Sr. Manoel Pilape (tinha 12 anos em 1938) que certa vez de madrugada, quando moravam na praia das Flechas, seus pais acordou com um barulho na praia e, ao verificar, constatou a presença de um cardume de peixe galo. Valendo-se simplesmente de um balaio, entrou n'água e efetuou a pescaria de 13 galos grandes.
Havia áreas de pesca conhecidas que, pela sua fartura, geravam apelidos como Banco do Brasil, como era conhecida a ilha do Sandri. Podia se matar lá o xerelete, a corvina, a pescada, o xaréu do preto, a sardinha, o goete, a enchova, a cocoroca, a caratinga, o carapicu, a cavala e outros. Outra área muito piscosa era Picinguaba e Pouso, onde se matava também todo tipo de peixe. Por fora da Ilha Grande matava-se muito xaréu do preto, goete, enchova e sardinha. E na praia do Sul a tainha. À noite, comumente via-se o peixe velado (nadando na superfície).
Natalício dos Santos
* Quando se conhecia a pescaria cocoroca, caratinga, farnangaio, palombeta, galo, espada, cavala, não se cercava para não ter prejuízo com a venda ou a rede. Podia-se ver enormes cardumes destas espécies, calculadas em 200 a 300 caixas de 100 kg, circulando tranqüilamente sem serem perseguidos.
Benedito Peres Filho
* O camarão era uma espécie desconhecida para a maior parte dos moradores de Angra, principalmente das ilhas. Nem se pensava em rede de arrasto. Somente em 1962, depois de uma coversa rápida com o pessoal do Rio que vinha arrastar no Abraão, Sandri e Parati, é que resolvi ir até o Caju comprar um "balão" (rede de arrasto).
O barco era o "Meu Capricho", apelidado de "Me Deixa" porque ia fazer uma viagem e só voltava rebocado. Tinha um motor Bolinder, cabeça quente, de 8 HP, que também era utilizado na pesca do cação.
A rede era de algodão, com duas portas, e media 7 braças pelo chumbo e 6 pela cortiça. Foi muito difícil se adaptar ao novo aparelho, pois o aprendizado era na prática e levou um bocado de tempo. No início se tirava muito pau do fundo da baía, pedaços de árvores que as enchentes traziam para o mar. Havia também muito lixo de navio. Por diversas vezes foi necessário limpar o local de pesca, carregando para terra o lixo encontrado, que não era pouco.
Naquela época não se entrava para terra. Trabalhava-se somente no meio do canal e no Abraão, Acaiá, Sandri, Imboassica e Coronéis, mesmo porque não faltava camarão. Durante a entre-safra pescava-se o cação, deixando a pesca do camarão de lado.
Algumas áreas de pesca ganharam apelidos que persistem até hoje, como Costumado (área entre o parcel dos Coronéis e a ilha da Imboassica), local onde, de costume, não faltava camarão. O Rasgo, entre a ilha dos Porcos e o continente, em direção a Angra, era local onde se rasgava muita rede.
Depois de 10 anos, aproximadamente, começaram a surgir os pequenos pescadores, com baleeiras e canoas a motor, que iniciaram a pesca em terra, pela facilidade e proximidade do pesqueiro, segundo relatos dos próprios pescadores.
Clementino Maia
* Matava-se muito camarão, 40 a 50 kg por lance, e muito peixe caratinga, goete, michole, polvo, linguado, pescadinha, maria-mole, siri e muitos moluscos. O Acaiá era um grande produtor de polvo. Por vezes era possível tirar num só lance 17 polvos grandes.
Na sacada da rede era comum, em determinados locais, a presença de organismos desconhecidos para os pescadores. Um deles, tipo de uma bola de gude grande que, por vezes, devido a quantidade, impossibilitava a pescaria no local. Havia outros que se assemelhavam a uma batata inglesa presa a uma tripa com uma minhoca viva dentro, que também tinha em quantidade. Os locais onde mais se encontravam esses organismos eram no Abraão, Longa, Porcos, Itacuatiba e Queimadas.
Antônio Domingos dos Santos